Começa com um cachorro. Raivoso, nos dois sentidos. A imagem da selvageria. E então mais cachorros. Uma matilha. Atravessam a cidade em crescente devastação, sem olhar para os lados, sem se incomodar com obstáculos. Até chegarem a seu objetivo. Uma janela. E latem. E latem. E Latem.
Um dos desafios da arte moderna, pensando a arte como a voz de seu tempo, era “como representar o irrepresentável, dizer o indizível?”. Uma das respostas para este dilema está em Guernica, de Pablo Picasso (1881-1973). Ali está representado ‘o horror, o horror’ do General Kurtz de Marlon Brando (1924-2004) em Apocalipse Now (1979).
Valsa com Bashir (em hebraico ואלס עם באשיר – Vals im Bashir, 2008) encara esse desafio do ponto de vista da memória. A imagem parcamente representada no primeiro parágrafo, e que abre o filme, é um sonho de um dos entrevistados, todos sobreviventes da Guerra do Líbano, de 1982. Esta cena guarda uma dupla relação com a guerra retratada no filme. De um lado, fala diretamente para a história do personagem-entrevistado: ele era o responsável por matar os cães das vilas para que estes não anunciassem a chegada dos soldados. De outro, a passagem dos cães pela cidade é como a passagem da guerra pela vida das pessoas: devastadora.
O filme combina diferentes técnicas de animação (rotoscopia, flash, animação tradicional em 2D e 3D) para amarrar todas estas pontas conceituais. O resultado é uma forma bela e poética de descrever o horror das memórias dos entrevistados-personagens que, juntas, vão tecendo a colcha que se torna o filme. Além de ser uma forma de retratar o irretratável, buscando a infidelidade da memória e sua minúcia subjetiva, ao invés de tentar escrachar o real. Que, de real, deixou apenas as cicatrizes nos corpos e nas almas daqueles povos.
*Luiz Vilela escreveu este texto. Trata-se do programa distribuído durante exibição de “Valsa com Bashir”, no dia 18 de maio de 2010.