Crime delicado e a obra aberta*

28/10/2009

Se você quer saber a minha opinião, o livro “Um crime delicado” fala da relação do crítico com a obra de arte. Uma relação, algumas vezes, autoritária e agressiva. Mas essa é a minha opinião.

“Um crime delicado”, de Sérgio Sant’anna, é um desses livros sobre o qual você pode passar horas especulando a respeito, tentando traduzir as metáforas presentes ali. É uma obra aberta, diria Umberto Eco, passível de inúmeras interpretações. Sob o meu ponto de vista, literatura de primeira.

O enredo é mais ou menos assim: o crítico de teatro Antônio Martins (o narrador-personagem) se apaixona por Inês, manca, musa e amante do artista plástico Vitório Brancatti. Já o crime delicado do título seria o enigmático estupro cometido (ou não) por Martins.

O que Beto Brant fez ao levar o romance de Sant’anna para o cinema foi construir mais um olhar possível sobre “Um crime delicado”, adaptando inclusive alguns elementos presentes no livro. No cinema, o título da obra perde o artigo “um”; Inês não é simplesmente manca, mas não tem uma perna; a trama se passa em São Paulo e não no Rio de Janeiro; o artista plástico, aqui nomeado José Torres Campana, ganha mais espaço, e por aí vai. Opções do diretor, conhecido por gostar de filmes que não sejam óbvios e por não gostar de se explicar.

Quer saber? Melhor para nós, público. Pois mesmo indo para o cinema, essa linguagem tão imagética, “Crime delicado” mantém-se como uma obra aberta.

*Texto do programa distribuído durante exibição de “Crime delicado”, no dia 26 de outubro de 2009.


É hoje! “Crime delicado” no Segunda tem cinema

26/10/2009

Exibição hoje, às 18h30, no miniauditório do Campus Curitiba.

Como não achei o trailer do filme, segue um “making of edit”.


Sant’Anna endossa filme de Brant

24/10/2009

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

“Eu estou no time”, diz o escritor Sérgio Sant’Anna para demonstrar seu apoio a “Crime Delicado”, filme de Beto Brant baseado em seu romance “Um Crime Delicado”.

Ele está escalado para participar amanhã, às 20h, da pré-estréia gratuita que acontecerá no Espaço Unibanco (tel. 0/xx/11/3288-6780), em SP, com promoção da Folha. Após a exibição, debaterá o filme com Brant, o roteirista Marçal Aquino, o ator, roteirista e produtor Marco Ricca, o ator e pintor Felipe Ehremberg e o roteirista Maurício Paroni de Castro.

Mas “estar no time” não impede Sant’Anna de apontar diferenças entre seu livro e o filme de Brant. O contraste maior, segundo ele, está na maneira com que a pintura de Vitório Brancatti (Felipe Ehremberg, ele mesmo autor da tela que aparece no filme) é tratada nas duas obras.

“A estética [da tela do filme] é diferente. É uma estética realista, enquanto a minha obra de arte é fake: é uma mistura de [Marcel] Duchamp com enganação. E eu sou duchampiano para burro. Até hoje se discute sobre ele: obra-prima ou embuste? No caso do livro, também deixei em aberto. No filme, o pintor é levado a sério. É um erotismo em que se acredita”, afirma Sant’Anna, 64.

O escritor vê algo de “mexicano, asteca” na tela de Ehremberg, algo que assume que lhe incomodou, já que no livro a obra passa longe dessas características. Outro incômodo está na cena do julgamento do crítico teatral Antônio Martins (Ricca). “No livro, o julgamento vira um julgamento estético. Se houve crime, foi dentro de uma obra de arte. No filme, o julgamento é de passagem. A gente nem sabe o desfecho”, diz.

E, por fim, ele ressalta que a participação de Vitório Brancatti no filme é maior do que no livro. “Acho que o crítico some muito no final para dar lugar ao pintor. No meu livro, o pintor é quase invisível. Mas é uma opção que o Beto fez. São opções estéticas. Não vou criticá-lo por isso”, afirma.

Sant’Anna enfatiza isso: suas ressalvas não são falas de rejeição. “A direção toda eu gosto muito. Inclusive o José Geraldo Couto fez uma crítica na Folha em que eu aprendi muito: a câmera é o tempo todo teatral. Isso é uma forma de ser fiel ao livro, de estar com o livro sendo diferente.”

Mudanças feitas no roteiro, como passar a trama de Rio para São Paulo ou fazer com que Inês não tenha uma perna (no livro é manca), não incomodaram Sant’Anna, que aprovou as cenas da boemia paulistana.

“Aquilo eu gostei. Muita gente veio falar comigo: aquilo não tem nada a ver com o filme. Mas eu acho que tem. Porque é o crítico naquela noite paulistana. Com o simples fato de o crítico estar naquele bar, eu senti a subjetividade do Marco [Ricca]. É uma coisa que veio se somar ao livro”, diz.

Sant’Anna, cujo conto “Estranhos” inspirou “La Muerte Es Pequeña”, curta do brasileiro Felipe Gamarano Barbosa que está no Festival de Sundance (EUA), não quer reacender a polêmica com Bruno Barreto, que fez em “Bossa Nova” algo completamente diferente da novela “Senhorita Simpson”. “Acho até que me pagou muito: R$ 44 mil para fazer uma outra história”, brinca.


Notícia publicada na Folha de São Paulo, em 25/01/2006


Diretor faz ode rigorosa e apaixonada à imperfeição

23/10/2009

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Digamos desde logo: “Crime Delicado” é um filme esplêndido, radical, único.

Na superfície, a história -inspirada em breve romance de Sérgio Sant’Anna- é bastante simples: o crítico de teatro Antônio Martins (Marco Ricca) se apaixona por Inês (Lilian Taublib), que por sua vez é musa e amante de um homem mais velho, o artista plástico José Torres Campana (vivido pelo artista mexicano Felipe Ehrenberg).

Uma particularidade de Inês é o fato de ter uma deficiência física bastante perceptível. Essa circunstância terá conseqüências na maneira como evoluirá o tenso triângulo amoroso.

Como Antônio é crítico teatral, Inês é modelo e Campana é pintor, o filme acaba por trafegar livremente pelo teatro e pela pintura. Ou melhor: sua busca parece ser a do ponto de intersecção entre essas formas de representação e o cinema, e sobretudo entre este (como síntese das artes) e a própria vida.

A primeira cena se desenrola num palco (trata-se de uma peça a que Antônio assiste como profissional) e dá a senha para a linguagem expositiva de todo o filme. De modo geral, o que veremos, dentro ou fora do palco, serão “quadros vivos”, filmados com câmera fixa, como que assumindo o ponto de vista de um espectador teatral. Por outro lado, ao mostrar os quadros eróticos de Campana sendo produzidos na interação entre ele e a modelo, na cama, ressalta-se o que há de teatro na pintura.

Assim como os trechos de peças exibidos (“Woyzeck”, “Confraria Libertina”, “Leonor de Mendonça”), os quadros da “vida real” (dois homens embriagados conversando num bar, por exemplo) não têm a ver diretamente com o entrecho central. Mas todos se iluminam uns aos outros e enriquecem subterraneamente o tema da paixão como elemento de desequilíbrio. Ou será do desequilíbrio, da imperfeição, como elemento de paixão? Não se sabe.

O fato é que, por baixo de sua aparente estranheza formal, “Crime Delicado” apresenta uma unidade de sentido que atinge o espectador primeiro pela emoção estética.

Pensar nexos e explicações é uma atividade posterior, que não deixa de ter a ver com o assunto que se discute na tela: as tensões entre a arte e a vida, entre o caráter falho desta última e a perfeição idealizada da primeira.

Pois Antônio Martins, vigilante do “Belo”, vê-se em crise quando descobre a beleza (em minúsculas) da imperfeição, que aqui é sinônimo de vida.

Se há algo que enfraquece um pouco a obra, do ponto de vista formal, é justamente o uso ocasional (e talvez inevitável) do campo/contracampo, pois esse recurso nos lembra que estamos no cinema, e não no terreno inefável, em suspensão, ao qual nos transportou a música sublime de Schubert. Mas ter estado lá é algo que não se esquece.


Crime Delicado

Direção: Beto Brant

Crítica publicada na Folha de São Paulo, em 27/10/2009


No 4º longa, Beto Brant espreita violência do desejo

22/10/2009

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Entre os desafios que o cinema nacional impõe ao jornalismo, entrevistar o diretor Beto Brant, 42, não é dos menores.

Você faz uma pergunta, e Brant silencia. Ou protesta: “Acho essa pergunta incompreensível”; “Tenho uma idéia clara sobre isso, mas não vou lhe dizer qual é”.

Fosse outra sua obra, não haveria por que insistir. Mas ocorre de ele ser o autor de “Os Matadores” (1997), “Ação entre Amigos” (1998), “O Invasor” (2002) e do inédito e excelente “Crime Delicado” (2005), que a 29ª Mostra de São Paulo exibe hoje.

De resto, Brant não é contra jornalistas (aparentemente). O que ele repudia é a idéia de, ao discorrer sobre seus filmes, impor ao espectador um ponto de vista, um único modo de ver -o seu- no qual caberiam múltiplos olhares.

“Gosto de um filme que não seja óbvio”, diz. Óbvio “Crime Delicado” não é. A exemplo de “O Processo do Desejo” (1991), do italiano Marco Bellochio, aqui nem sequer sabemos se o crime do título (um estupro) de fato ocorreu, embora a cena da dúvida esteja impressa na tela, sem cortes.

Brant filmou em preto-e-branco os trechos em que a discussão sobre o delicado crime se dá nos tribunais de Justiça e no interior da Redação de um jornal.

O jornal entra na trama porque Antônio Martins (Marco Ricca), o protagonista do filme e do estupro, é crítico de teatro de um diário fictício. O chefe de Martins, com quem ele dialoga sobre redenção e culpa, é interpretado por Alberto Guzik, um dos principais nomes da crítica e dos palcos na cena real do teatro brasileiro.

Por que Brant decidiu contrastar a vigorosa palheta de cores do longa com o preto-e-branco nessas cenas? “Se eu disser, vou começar a explicar o filme”, escapa novamente o diretor.

A (não) conversa segue em frente. Bem adiante, Brant larga uma pista relacionada à questão anterior. “Todas as cenas são noturnas. De dia, a gente filmou apenas a instituição [o tribunal e o jornal], o que enquadra.”

As criaturas da noite que circulam pelo longa são quase sempre amigos do diretor, que ele convidou a uma participação espontânea, sem falas roteirizadas.

Os textos que brotaram do improviso, no entanto, parecem seguir à risca o fio do filme e sua investigação sobre a natureza da “bruta flor do querer”.

É do cineasta Cláudio Assis (“Amarelo Manga”) a participação mais ruidosa, num fim de noite de bar, regado a cerveja e ciúmes. Quando desvia os olhos da mulher com quem trava seu embate amoroso, Assis mira Martins, espectador solitário da cena, e sentencia: “Você não ama. Quem não reage rasteja”.

Brant confessa (uma confissão, ao menos!) que não poderia esperar conclusão melhor. No mesmo bar, sob a mesma capa da noite, o ator Adriano Stuart, presente em “Os Matadores”, perde o rumo e a palavra, quando a conversa não-ensaiada o conduz à tentativa de resumir sua vida. “Eu errei”, diz, recuperando o texto e o prumo.

Para Brant, as circunstâncias que reuniram a equipe do filme foram “seqüências de acasos iluminados”. Casualmente, ele conheceu Lilian Taublib, que canta e escreve, mas não havia pensado em ser atriz.

Taublib, que não possui uma das pernas, concordou em oferecer ao “Crime Delicado” seu primeiro papel no cinema, o da musa Inês, e a nudez de seu corpo.

São as formas de Taublib que o pintor mexicano Felipe Ehrenberg, também casualmente agregado ao projeto, registra em telas gigantes, cujo sentido Brant faz oscilar na visão do espectador, à medida em que o filme avança.

A pintura de Ehrenberg e a paixão incontida de Martins por Inês aos poucos revelam no filme “uma ou duas coisas sobre ela”.

Este seria o título de “Crime Delicado”, até que Brant mudou de idéia e voltou ao original do texto de Sérgio Sant’Anna, base do longa. Do “Um Crime Delicado” de Sant’Anna, Brant excluiu o artigo “um”. Querer saber por que é esperar ouvir demais de quem diz só uma ou duas coisas sobre si.

Notícia publicada na Folha de São Paulo, em 27/10/2005