Algumas questões podem ser levantadas acerca do cinema documentário e de suas relações com as noções de falso e falsificação. Entretanto, antes propriamente de abordar o formato do documentário a partir dessa perspectiva é preciso enunciar do que trata efetivamente esse tipo de cinema que, apesar de sua longevidade (tão longa que se confunde com o próprio cinematógrafo) suscita inúmeras dificuldades em sua definição.
Então, a primeira das questões diz respeito ao próprio sentido do filme documentário, ou dito de outra maneira, o que nos leva a caracterizar o documentário cinematográfico. Ou ainda, de que modo podemos reconhecer um filme de não-ficção?
Temos então já uma gama de nomes para o documentário: cinema documental, filme documentário, documentário cinematográfico e filme de não-ficção. O que a princípio parece apenas um conjunto de sinônimos para esse tipo de cinema, por outro lado, é possível dizer que esses vários nomes já nos indicam as dificuldades de definição que esse cinema comporta.
Se ele é um cinema documental temos então um tipo de cinema (observem bem que falei em tipo e não em gênero cinematográfico) que busca documentar, isto é, mostrar a realidade tal qual ela é, procurando na medida do possível não interferir no processo mesmo de documentação do real. A palavra “documento” remete à prática do historiador, aquele pesquisador que busca a verdade dos fatos ‘da’ e ‘na’ história (passada ou presente) a partir de fontes que ele chama de documentais. Por sua vez, um filme documentário, apesar de parecer um mero sinônimo do primeiro exemplo, não o é. Por quê? Simplesmente pelo sentido que a palavra filme aqui possui. Afinal um filme é uma produção que parte, via de regra, da aspiração ético-estética de um ou mais realizadores, seja o produtor-diretor da indústria americana cinematográfica, por exemplo, ou dos filmes autorais de realizadores independentes de qualquer parte. Se a idéia de filme está presente e antecede a de documentário, temos então, uma certa contradição em termos, já que o próprio sentido de documentar é buscar uma verdade fria e distante dos fatos. Quase o mesmo pode ser dito de documentário cinematográfico, pois temos a palavra documentário como primeiro termo e cinematográfico como segundo, praticamente invertendo a primeira das definições comumente utilizadas para esse tipo de cinema. O documentar torna-se o eixo fundamental da produção, podendo, desse modo, ser um filme (o documentário cinematográfico) ou uma reportagem jornalística, ou mesmo um trabalho de historiador ou antropólogo. Assim, estaríamos mais perto do documento que do cinema. E, por último, a idéia de filme de não-ficção é a mais problemática, pois enseja uma questão de difícil resposta: como distinguir o que é ficcional do que não é ficcional?
Como não conseguimos avançar muito a partir dos termos que normalmente definem o tipo de cinema em questão, talvez devêssemos tentar estabelecer o que esse cinema não é antes de tentarmos enfrentar o problema que consiste em defini-lo com o rigor e a precisão que a questão exige.
A primeira não-definição do cinema documental pauta-se sobre o fato de que não estamos diante de mais um gênero cinematográfico, como, por exemplo, a comédia, o policial, o faroeste, o suspense, o musical ou qualquer outro. Por mais que se tente enquadrar o documentário em um gênero, essa definição mostrar-se-á pobre, pois, perder-se-á o mais fundamental: o enquadramento por gênero não responde à questão essencial: o que um documentário tem que nenhum outro modo de produção e realização cinematográfico possui, diferenciando-o sobremaneira do filme de ficção?
A segunda não-definição do filme documentário diz respeito à própria gramática do cinema clássico narrativo: a de que o cinema ficcional teria um roteiro predefinido, enquanto o documentário não teria roteiro, já que este último busca documentar um determinado problema, situação, contar a vida de um personagem real ou exibir as paisagens de uma determinada localidade, prendendo-se dessa forma, especificamente à realidade mesma. O mais forte argumento contra essa definição, o que faz dela então uma não-definição é que pode existir muito bem uma ficção sem roteiro e um documentário roteirizado.
Uma terceira não-definição para o documentário cinematográfico diz respeito às linguagens utilizadas para esse tipo de cinema em contraposição ao cinema de ficção. Se existe uma corrente de realizadores de documentário que defende que este deve ser sempre meio “sujo”, isto é, realizado no calor das filmagens, evitando-se sempre a utilização de recursos que denotem uma manipulação das imagens fora da captação das mesmas, dizendo que isto somente viria a fazer com que esse tipo de cinema mostrasse sua adesão à realidade, diferenciando-se agudamente da ficcionalização do real. Por outro lado, uma série de jovens realizadores de documentários, como o brasileiro Marcelo Masagão, autor do ótimo Nós que aqui estamos por vós esperamos, inviabiliza tornar esse pressuposto como uma regra geral. Masagão se utiliza sem prurido ou pudor de recursos da computação para compor suas imagens (deixando claro ao espectador esse procedimento), o que fez com que inúmeros críticos apontassem para a impropriedade de sua obra, isto é, o que o autor teria realizado é tudo, menos um documentário; todavia, também disseram, que não se tratava de um filme de ficção (o filme de Masagão, inscrito em um festival de documentários, foi aclamado pelo público e detratado pelo júri).
Também poderíamos abordar a difícil distinção entre cinema ficcional e filme de não-ficção, diferença esta que se assentaria no papel do realizador cinematográfico ou do diretor do filme. É comum se dizer que um diretor de documentários é entre os realizadores cinematográficos aquele que menos deve aparecer, procurando negar qualquer apelo autoral ou marca pessoal neste tipo de produção audiovisual. Que caberia ao diretor do filme de ficção, segundo os preceitos da teoria do autor desenvolvida pelos críticos-cineastas dos Cahiers du Cinèma, desenhar com cores fortes impressões e idéias sobre o real, tecidas através das imagens cinematográficas do filme de ficção, fazendo, assim, de um conjunto de filmes, uma Obra.
Bem, creio que aqueles que já tiverem a oportunidade de ver os filmes de Eduardo Coutinho, realizador brasileiro de documentários, devem ter vislumbrado sem dificuldades um forte assento pessoal em seus filmes, além da presença marcante de sua “persona” cinematográfica, atrás e à frente da câmera.
Talvez um ponto de convergência para o início da discussão sobre o documentário é colocar em questão dois pontos: esse tipo de cinema como fonte de informação e sua relação com a verdade.
Em distinção ao filme de ficção, o documentário, quase sempre, pretende passar informações sobre seu objeto de investigação (a palavra – investigação – foi aqui utilizada de modo proposital). Por exemplo, filmes como Hiroshima mon amour de Alain Resnais e um documentário como Corações e mentes de Peter Davis. O primeiro trata-se sem sombra de dúvidas de uma ficção: pelo tratamento dado pelo diretor, pelos atores em cena atuarem em papéis que não são os seus e por toda a atmosfera de sonho e desejo presente na obra. Entretanto, o filme dirigido por Resnais é intercalado por imagens reais da explosão da bomba atômica naquela cidade e de seus efeitos sobre os moradores, buscando assim, levar o espectador do espanto à reflexão, passando pela indignação, para que estes tomem partido de modo contundente contra os horrores da guerra. Em Hiroshima mon amour as imagens documentais são utilizadas como um recurso ficcional. Por sua vez, em Corações e mentes, a guerra do Vietnã é exibida da forma mais cruel possível, em seqüências terríveis, como o bombardeio de napalm sobre crianças indefesas, procurando levar os espectadores ao horror, já que sabemos não se tratar de uma obra de ficção: aquelas crianças estavam mesmo sendo alvejadas e seus corpos estavam mesmo em chamas, queimadas “realmente” por intermédio de bombas incendiárias lançadas pela força área americana. É importante ressaltar que, se em Hiroshima mon amour o documental serve à ficção, em Corações e mentes, o documento serve à emoção e à catarse do espectador. Elide-se a metáfora na ficção com Alain Resnais: tudo acontece como se realmente estivéssemos em Hiroshima diante do horror da bomba atômica. Adota-se a metáfora no documentário que é Corações e mentes: tudo acontece para que o espectador se comova diante do horror da guerra.
Destarte, é possível dizer que há mais pontos em comum unindo o filme de ficção ao documentário do que pontos a separá-los. Mesmo se porventura fôssemos distinguir um documentário televisivo ou um realizado para o cinema, essas diferenças seriam muito pouco importantes, pois os realizadores deste tipo de cinema o fazem utilizando recursos tanto do cinema digital (como é hoje em dia realizado para TVs) ou a película (como anteriormente eram os realizados especificamente para cinema). Não importa. Talvez o que importe seja o que o realizador cinematográfico almeja destacar em sua obra: seus ideais, suas idéias, sua visão de mundo, mais que isso, construir seu próprio mundo. Seja através da ficção, seja por intermédio do documentário cinematográfico. Em suma, o que importa é o que pensa o cineasta, como pensa o diretor, o que importa é quando “pensa” o cinema, isto é, justamente como os realizadores expressam seu pensamento, por intermédio da criação de suas imagens, das imagens e sons de seus filmes.
No entanto, uma questão daí se infere, a da relação entre o que é falso e verdadeiro em um documentário cinematográfico. Explico-me através de uma questão. Ressaltando a dificuldade em definir, no bojo da realização cinematográfica, o filme de não-ficção, como falar então do processo de ficionalização dos filmes documentais? E mais, como enquadrar as obras que estão em uma região limítrofe entre a ficção e não-ficção, criando no espectador uma indiscernibilidade quase intransponível? Como se não soubéssemos jamais em determinadas obras se estamos diante de uma ficção ou não. Talvez precisássemos então da noção de falsificação. Ou ainda, da idéia, nova para a teoria do cinema de narrativas falsificantes. Essas narrativas podem ser chamadas de narrativas falsificantes ou falsificadoras por se oporem às narrativas ditas verdadeiras. O cinema moderno foi pródigo na construção dessas narrativas falsificantes.
Antes de continuarmos a falar sobre as relações entre falsificação e cinema, destacaremos o essencial desta distinção tão importante proposta pelo filósofo francês Gilles Deleuze entre o clássico e a modernidade cinematográfica.
O primado do cinema moderno sobre o cinema clássico, nos livros que Deleuze dedicou ao cinema, nada tem a ver com gosto pessoal, apreço a tais ou quais cineastas, menos ainda com quaisquer tentativas de hierarquização entre os criadores de imagens. Deleuze, ao privilegiar o cinema moderno, vê, na virada histórica que a arte do cinematógrafo produziu no pós-guerra com o Neo-realismo italiano e com Cidadão Kane de Orson Welles, uma nova configuração de imagens que, além de fortalecer sua produção conceitual, corrobora sua tese de uma nova imagem do pensamento. O cinema moderno possui uma série de características a partir das quais é possível pensar uma reversão de uma imagem representativa ou dogmática do pensamento que se encontrariam nas imagens-movimento do cinema clássico: 1) o desmoronamento do esquema sensório-motor; a recusa da montagem e do extra-campo como redimensionamento do Todo; a substituição da narratividade pela descrição; 2) o reencadeamento dos cortes irracionais no lugar do encadeamento dos cortes racionais; 3) a imagem-som é configurada pela “legibilidade” da imagem e pela “visibilidade” do som, que em outras palavras pode ser chamada da disjunção entre a imagem e o som.
O cinema clássico não foi capaz de pensar uma imagem direta do tempo por estar preso ao modelo da recognição. O cinema moderno rompe com este modelo e, com suas conquistas, libera o tempo em direção às imagens-tempo que possibilitam novos ângulos e perspectivas do real, cujo ápice se dá na obra dos cineastas Alain Resnais, Hans-Juergen Syberberg e Jean-Luc Godard.
Os cinemas de Syberberg, Resnais e Godard apresentam três grandes características que os colocam como pontos de convergência das imagens-tempo. Em primeiro lugar, encontramos uma disjunção do sonoro e do visual: uma dissociação objetiva entre o que é dito e visto; uma dissociação subjetiva entre a voz e o corpo dos personagens. Em segundo lugar, o visual e o sonoro não reconstituem um todo, mas entram em relação “irracional”, seguindo direções dissimétricas. E, por último, é possível falar em uma imagem-som, para além do sonoro, e do que eu chamaria de uma imagem-luz, para além do visual, que são disjuntivas, irracionais e relacionam-se de modo indireto e livre. Segundo Deleuze, o cinema moderno cria novas imagens que evitam os recursos do flash back e do extra-campo, inventando outros meios que estabelecem novas relações nos planos do tempo e do espaço cinematográficos. E nessas relações entre o visual e o sonoro, estão presentes alguns dos aspectos mais relevantes da ultrapassagem das imagens-movimento para as imagens-tempo:
O cinema moderno matou o flash back, tanto quanto a voz off e o extra-campo. Ele só pôde conquistar a imagem sonora impondo uma dissociação desta e da imagem visual, disjunção que não deve ser superada: corte irracional entre ambas. E, no entanto, há uma relação entre elas, relação indireta livre, ou relação incomensurável, pois a incomensurabilidade designa uma nova relação e não uma ausência. Eis que a imagem sonora enquadra uma massa ou uma continuidade da qual se vai extrair o ato de fala puro, isto é, um ato de mito ou fabulação que cria o acontecimento, que faz ascender o acontecimento aos ares, e ele próprio (ato) se eleve numa ascensão espiritual. E a imagem visual, por seu lado, enquadra um espaço qualquer, espaço vazio ou desconectado que ganha novo valor, pois vai enterrar o acontecimento sob camadas estratográficas, e fazê-lo descer como um fogo subterrâneo sempre recoberto. Logo, a imagem visual nunca mostrará o que a imagem sonora enuncia (Deleuze, 1990, p. 330).
O cinema, segundo Deleuze, não é uma língua universal ou primitiva, nem mesmo uma linguagem. O cinema deve ser pensado como materialidade, como uma matéria pensante, autônoma, o que o filósofo chama de matéria inteligível. Essa matéria inteligível traz à luz movimentos e processos de pensamento (imagens pré-lingüísticas) e pontos de vista tomados sobre esses movimentos e processos (signos pré-significantes). Essas imagens pré-lingüísticas e esses signos pré-significantes fazem do cinema uma psicomecânica que possui uma lógica própria.
Partindo deste parti pri, segundo Gilles Deleuze, o cinema moderno prima pela arte da falsificação. É um cinema de falsários, de prestidigitadores, de videntes. É preciso que se explique, antes de mais nada, o sentido que está sendo dado aqui aos termos falsário, prestidigitador e vidente.
Os criadores do cinematógrafo, em uma de suas realizações iniciais produziram duas intrigantes imagens. A primeira mostra um grupo de trabalhadores saindo da porta da fábrica dos irmãos Lumière, seus próprios inventores; a segunda ‘documenta’ a chegada de um trem a uma estação francesa. O cinema, em seus primórdios, parecia aspirar a uma reprodução quase jornalística da realidade. Contudo, a partir dos filmes de Georges Méliès o cinema esboçou a primeira tentativa de contar uma história, iniciando um fecundo diálogo com as práticas ilusionistas e de falsificação do real.
Desde o pré-cinema, cuja narratividade ainda estava por se desenvolver, os criadores de imagens se sentiram atraídos pela possibilidade de transbordar as fronteiras que separariam a realidade do sonho. No filme Voyage à la lune, de 1902, Méliès brinca com as possibilidades de subverter os princípios que regem nossa percepção cotidiana, apresentando aos incrédulos espectadores do início do século XX outros modos de ver através da ilusão fotográfica em movimento. Embora as práticas cinematográficas de Méliès ainda não configurem o cinema narrativo, já encontramos elementos daquela que constituiria a característica que considero mais relevante do cinema moderno: a invenção de novos mundos, partindo da criação de novos cinemas, de cinemas novos. Para que isso se desse, foi necessário desenvolver a narrativa cinematográfica, subvertendo-a, semelhante a um mágico nos confundindo com seus números, uma vidente lendo o ilegível, um falsário nos levando ao engano: todos passageiros da errância. O prestidigitador, o vidente e o falsário são, portanto, os verdadeiros personagens do cinema. Deleuze os incorporou à sua análise da arte cinematográfica e privilegiou os paradoxos do mágico, a clarividência do vidente e a astúcia do falsário. Trata-se aqui então de um novo procedimento de realização cinematográfica.
Orson Welles e sua obra constituem-se bons exemplos cinematográficos desse procedimento, isto é, a instauração das narrações falsificantes, colocando em xeque a veracidade do filme documental. Temos com o seu cinema o elogio à falsificação, a disponibilidade a errância e a inoperância da dúvida, subvertendo, assim, as regras das narrações verídicas. Isso se dá na medida em que nos filmes de Welles há a presença maciça de ladrões, escroques, estelionatários que subvertem a ordem dos acontecimentos, gerando caos na vida dos demais personagens do filme. Não há como assegurar que tudo que estamos assistindo na tela é verdade. Este procedimento fica mais explícito e é levado às últimas conseqüências em seu filme F for fake (Verdades e mentiras), de 1975. Que pode ser chamado de um pseudo-documentário.
O filme a princípio é sobre um impostor: um falsificador de quadros de mestres da pintura, Elmyr de Hory, e sobre seu biógrafo, Clifford Irving, também um falsário. Além desses personagens e suas histórias, outras subtramas, intercaladas, também são apresentadas. Em primeiro lugar o filme narra um passeio de uma bela mulher que viremos a saber tratar-se de da atriz Oja Kodar. Logo em seguida, Welles, ele próprio é destacado como locutor de rádio por intermédio da encenação cinematográfica da célebre narração da Guerra dos mundos que tanto pânico causou, tamanha a veracidade da narrativa wellesiana. Não obstante, o filme menciona as acusações que o cineasta sofreu porque supostamente teria roubado os créditos do escritor de Cidadão Kane. Finalmente, nos é apresentado um suposto encontro de Oja Kodar com Picasso em uma pequena cidade francesa.
Welles discorre sobre seus propósitos no início do “documentário” e já dá pistas do que nos espera nas próximas duas horas de projeção: “É um filme sobre esperteza, fraudes e mentiras.” E mais, ele continua, lançando um aviso ao espectador que, ironicamente, parece querer provocar: “Na próxima hora tudo o que você escutar é verdade e baseado em fatos reais.” Quando Oja Kodar o interpela: “Você e seus velhos truques de novo?” Welles responde, sintetizando sua estética dos falsários: “Por que não? Sou um charlatão.”
Verdades e mentiras começa com o próprio Welles apresentando-se como um prestidigitador, um ilusionista, a um menino, fazendo truques, mostrando para ele que contar uma história é uma forma de trapacear. Após uma série de truques e mágicas, Oja o interpela dizendo-lhe que ele é um ótimo ator, logo, um trapaceiro. Welles afirma que o filme que está para ser exibido, o que é curioso, pois o cineasta fala como se já não estivéssemos “dentro” de suas imagens, isto é, ele empreende um diálogo com seu espectador para mostrar que realmente estamos diante de um filme, e como tal, de uma obra de ficção, mesmo quando estamos dizendo “a verdade”. A verdade em questão é sobre o mercado de arte, isto é, sobre um mercado de ilusões. O fato de Elmyr pintar falsificações, e estas ganharem valores astronômicos, servindo à voracidade de colecionadores, mostra claramente que esse fato decorre da própria natureza constituinte do mercado de arte e da má-fé de seus experts, que teriam por papel atestar o que é verdadeiro ou falso, autêntico ou fraudulento, modelo ou cópia.
Todo o filme gira em torno da tensão entre o que é verdadeiro ou falso. Trata-se de mostrar que não temos como determinar com exatidão o estatuto de veracidade da arte ou buscar um sentido de autenticidade, sem recorrer a jogos de poder e interesse. Mais que isso, o filme toma partido na afirmação da grandeza do falso, mostrando a genialidade dos falsários. Seja através de Elmyr, o gênio falsificador, escroque e bon vivant, ou de seu biógrafo, que escreveu uma falsa biografia sobre a célebre personalidade americana Howard Hughes, aviador que atravessou o Atlântico; seja o próprio Welles, ao levar pânico a Chicago em sua transmissão radiofônico de A Guerras dos mundos de H. G. Welles.
Uma interessante anedota sobre Picasso narrada pelo cineasta é, no derradeiro episódio de Verdades e mentiras, emblemática para mostrar o elogio à falsificação e sua relação com a arte. Welles nos conta uma história, que não sabemos ser verdadeira ou falsa, do mestre espanhol, que teria ido a uma exposição sua e, zeloso, constatou várias falsificações de seus quadros. No entanto, um amigo lhe diz que presenciara Picasso pintar aqueles quadros e que, portanto, toda a série seria de legítimos picassos, ao que o artista retrucou: “Tenho certeza de que esses quadros são falsos, porque eu mesmo os pintei.” Os picassos falsos foram pintados pelo próprio Picasso.
Orson Welles, com seu filme F for fake, estabelece uma tênue linha que, a rigor, não deixa separar o falso do verdadeiro, a verdade da mentira. “F” de falso, “M” de mentira para documentar o real.
REFERÊNCIAS
BARNOUW, E. 1993. Documentary: a history of the non-fiction film. 2ª ed., Oxford, Oxford University Press.
BAZIN, A. 1991. O Cinema. Ensaios. São Paulo, Brasiliense.
DELEUZE, G. 1985. Cinema 1. A imagem-movimento. São Paulo, Brasiliense.
DELEUZE, G. 1990. Cinema 2. A imagem-tempo. São Paulo, Brasiliense.
VASCONCELLOS, J. 2005. Arte, subjetividade e velocidade: ensaios sobre Bergson, Deleuze e Virilio. Rio de Janeiro, Publit Soluções Editoriais.
Texto de Jorge Vasconcellos – Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Curso de Cinema da Universidade Gama Filho – publicado em Revista AV – AudioVisual.