Cinco meninos chegam à porta de uma senhora da vizinhança para pedir: doces ou travessuras? Todos, menos um, vestem fantasias dos mais famosos super-heróis dos quadrinhos. Estão lá o Super-Homem, o Batman, seu companheiro Robin e o Lanterna Verde. A dona da casa olha o quinto menino e não se convence – seus trajes não lhe parecem os de um super-herói. A resposta do pequeno Harvey Pekar (Daniel Tay) deixa clara a sua falta de interesse pelas vazias convenções americanas: “Sou só uma criança da vizinhança, ok?”.
É com esta cena que o filme “Anti-Herói Americano” (American Splendor, EUA, 2003) começa a falar sobre a vida do roteirista de quadrinhos Harvey Pekar. Não está claro, mas é pouco provável que esta passagem tenha sido vivida realmente por ele. De qualquer forma, ela contextualiza bem a obra de Pekar, interpretado pelo ator Paul Giamatti.
“Anti-Herói Americano” é uma espécie de “baseado em fatos reais” misturado com documentário e entremeado de pitadas de quadrinhos, formato que enriquece a narrativa sobre a vida de Harvey Pekar. Com histórias e personagens tão peculiares e intrigantes, roteiristas menos criativos que Robert Pulcini e Shari Springer Berman já dariam conta do recado. Melhor para nós, espectadores.
E quem é mesmo este tal de Harvey Pekar? Um fracassado, um embaraço social, um “nobody guy” que não tem sorte com mulheres, não concluiu a faculdade e que tem um emprego medíocre como arquivador de um hospital público em Cleveland, Ohio. Ok, está certo! Se ninguém é sempre vencedor, também não há quem seja 100% derrotado. A questão é como se vê o mundo e a postura que é mantida frente aos problemas e obstáculos da vida. Melancólico e pessimista, Harvey Pekar também é um fã de quadrinhos, leitor voraz de livros e fascinado por jazz.
São os quadrinhos e o jazz que proporcionarão uma vida – digamos assim – um pouco menos medíocre a Pekar. A tentativa de aumentar sua coleção de discos de jazz irá fazer com que ele conheça em 1962 em Cleveland, durante uma busca por raridades, o quadrinista do underground americano Robert Crumb (representado por James Urbaniak no filme), ainda não famoso por seus “Fritz, the Cat” e “Mr. Natural”. Com muitos interesses em comum, os dois tornam-se bem próximos. Já os quadrinhos (que ele também colecionava) irão dar um sentido à sua vida, mesmo que ele só saiba desenhar bonecos tipo palitinho e que, por algum tempo, não consiga ter nenhuma idéia original e decente para um roteiro.
Afinal, para que Harvey Pekar precisaria de uma idéia original? A grande sacada é a descoberta de que “ordinary life is pretty complex stuff”. E aí voltamos para aquela cena que inicia o filme. Enquanto as comic books americanas estavam atoladas de super-heróis e de animais humanizados como Mickey e sua turma, Pekar – um homem solitário e introspectivo – volta-se para sua realidade e a descobre digna de tema central de uma história em quadrinho. Robert Crumb, para quem ele mostra seus primeiros roteiros, observa naquele momento que ele fez de si próprio um herói dos quadrinhos. E, topando desenhar aquelas histórias, lança Harvey Pekar às HQs do underground americano.
Agora um tanto conhecido nos Estados Unidos, o homem solitário “conquista” sua terceira esposa, uma leitora de quadrinhos chamada Joyce Brabner (no filme, Hope Davis) – mulher nenhum pouco convencional, diga-se de passagem. Reviravolta? Final feliz? Nada disso. A pequena fama não possibilitou a Pekar que ele vivesse apenas dos quadrinhos, como proporcionou a Crumb. O roteirista de Ohio aposentou-se como arquivista de hospital público. Antes disso, ainda teve que lutar durante um ano contra um câncer, o que lhe rendeu a premiada graphic novel “Our Cancer Year”, produzida em parceria com Brabner.
É impossível falar do filme “Anti-Herói Americano” e da obra de Pekar sem citar sua atitude impaciente e sua visão muitas vezes amarga sobre situações do cotidiano: a velha judia que exige descontos e conta moedinhas na fila do supermercado, fazendo com que a fila não ande, lhe dá nos nervos. Não dá pra deixar de destacar seus esquisitos colegas de trabalho, Sr. Boats (Earl Billings) e o auto-intitulado “nerd” Toby Radloff (Judah Friedlancer). Outra personagem que não pode ser esquecida é a sua filha adotiva (estranhamente adotada, como tudo o mais na vida de Pekar) Danielle (Madylin Sweeten).
A obra de Harvey Pekar é marcada por fatos e personagens de sua vida e é isso que a torna tão especial. Falar sobre um comum homem fracassado, imagem oposta ao modelo do “american way of life”, num momento em que os quadrinhos davam prioridade absoluta (e até hoje o mainstream dá prioridade) aos super-heróis, é uma forma simples de inovar e ser contestador.
Em tempo: “Anti-Herói Americano” é um filme live-action (ou seja, com atores reais, de carne e osso). Então é muito justo que você se pergunte: o que raios este filme está fazendo em uma seleção de animações? Bom, meus caros, a gente gosta muito desse filme e há cenas de interação live-action e animação (como a da velha judia). É verdade, existem outros filmes em que esta interação é bem maior, como “Uma cilada para Roger Habbit”, “Space Jam” e “Looney Tunes: Back in Action”. Mas o fato é que a gente gosta muito desse filme.
*Tássia Arouche escreveu este texto. Trata-se do programa que seria distribuído durante exibição de “Anti-herói americano”, no dia 14 de dezembro de 2010. Seria distribuído, se não fosse por aquela maldita “falha técnica”.